22 de abr. de 2009

Garota coca-cola

Sorvia a coca-cola em grandes goles, era sua bebida preferida. E entre um gole e outro pensava na vida, nos muitos que conhecia e nos poucos, porém fiéis amigos. Queria correr o mundo, conhecendo pessoas e suas vidas, novos lugares e maneiras de viver, novos cantos e instrumentos, novas vozes.Era uma garota coca-cola. E trazia em si as marcas e emblemas de uma época cheia de valores falsos e vãos, porque todas as lutas pelas quais pareciam valer a pena já tinham acontecido: a batalha pela liberação sexual, pela ausência de repressão, pela cultura,pelo aparthaid, e liberdade de imprensa. Era uma garota coca-cola, com all stars nos pés, mochila nas costas, mp3 nos ouvidos e todos os sonhos do mundo dentro de seu coração azulado: ter um cachorro, voltar aos EUA de sua adolescencia, ganhar a vida fazendo o que gostava, viver um amor que lhe tirasse da terra e lhe fizesse voar, viver.No guarda-roupa uma infinidade de camisas bacanas, calças jeans e perfumes bons, que o mundo merecia odores agradáveis,pensava, quando refletia no espelho seu rosto juvenil e delicado, onde vez ou outra uma espinha vermelha e chata vinha morar.Nas férias, a garota urbana e rock in roll que gostava de boates underground e sanduíches pedidos por telefone,virava bicho do mato e ficava frente à frente com seu lado mais selvagem. Ia para a casa dos pais, a mesma da sua infância, e se permitia comer fruta tirada do pé, tomar banho de mangueira, passear de bicicleta de noite olhando as estrelas, ir à festas do clube local e tirar fotos de flores silvestres. Depois, já renovada, voltava à cidade grande e à sua rotina de trabalho e estudos e na sua sala de poucos móveis, tocava violão e compunha músicas, olhando a flor de estimação que murchava sem água e que uma vez molhada, magicamente parecia resplandecer de tanta vida...Ah, a garota coca-cola era feita de dores antigas e perenes, de silêncios profundos e incomensuráveis, mas era também feita de sonhos e devaneios, ainda que poucos soubessem desses sonhos, ainda que poucos a soubessem ler.Vez em quando podia-se ver seus sonhos resplandecerem na sua retina brilhante, assim fugidios e dependurados, assim desapercebidos.(É que a garota não percebia que seus sonhos de tanto rodarem dentro de seu peito, em dias de polvorosa, vinham todos aos borbotões, morar aqui fora.)Mas ao perceber, ela logo os engolia novamente, num misto de medo e insegurança. "Se eu coloco meus sonhos todos para fora, como garantir que terei outros, que sonharei novos"?Ah! a garota coca-cola não sabia que sonhos sempre haveriam de existir enquanto houvesse vida e que uma vez realizados, outro punhado deles nasceria,novinhos em folha! Ela não sabia que a vida era mesmo assim: esse emaranhado de surpresas e pequenas festas, esse lugar para onde a gente vinha um dia e que deixava depois de um tempo,a vida enfim era esse conjunto de sensações, de risos e lágrimas, de abraços apertados e de amor feito com amor,a vida era esse complexo ajuntamento de pessoas e opiniões, de música e stress, de abandono e de paz. E à despeito do preço do pão e da queda do dólar a vida era festa, era beijo dado de surpresa, era aniversário comemorado num café, era a espera e era o reencontro.
Eternamente.
Ciclicamente.
Sempre.

19 de abr. de 2009

Doida varrida

Descera a rua correndo como uma doida varrida, disseram os vizinhos. É que ela, a moça, precisava chegar a tempo de se encontrar com a chuva, que tinha começado fininha e agora no final da tarde parecia varrer com fúria todos os cantos da rua,daquela rua onde a moça morava a tantos anos. Desde criança ela gostava de brincar por entre as poças dágua que a chuva deixava depois das visitas e era sempre o mesmo ritual: da janela de casa esperava a chuva tomar corpo e quando via que a festa estava no seu auge, por entre raios e trovões lá ia ela, correndo e descendo a rua, a brincar nos redemoinhos de vento, a sorrir com a água lambendo o seu corpo e tomando conta de tudo ao redor,das plantas, dos bichos escondidos nas árvores, das águas paradas que se juntavam à chuva que descia sem se preocupar ou se aperceber da realidade aqui de baixo. Em todos os momentos a chuva esteve presente. No aniversário de sete anos quando quebrou um dente, aos treze anos no dia em que descobriu-se mulher e aos 22 quando pela primeira vez se entregou ao primeiro homem que amou.Em todos estes momentos a água vinha aos borbotões, companheira,se confundindo com seus cílios, cabelos e boca, deslizando por seu colo e umbigo,excitando,fundindo, ferindo,umidificando e acarinhando tudo o que ela tinha de melhor e de pior, que a chuva era também redenção e limpeza de dias ruins,de momentos vazios e escuros. A chuva para ela era mesmo assim, momento de encontro consigo mesma, sagrado oráculo onde ela guardava suas perguntas mais secretas e inquietantes. Para onde ela iria? O que faria da vida agora que ele a havia deixado? Por que o amor era então esta coisa oca e sem sentido, sentimento louco que acariciava tanto quando enlouquecia? Ah! que a chuva lambesse e tirasse dela tudo o que havia de ruim e que quando voltasse a encontrasse melhor,mais calma e mais sábia.Bebendo a chuva! Colhendo a água! Enxarcando-se de amor por si mesma e pela vida!Seguiria, sempre assim a moça, e quando os vizinhos a vissem passar e a chamassem de doida varrida, de certo a mesma não se importaria, pois ela era doida sim,completa e integralmente doida, alucinadamente doida pela vida, incrivelmente e absurdamente feliz.

15 de abr. de 2009

Escolha

Tatuara em seu ombro a marca latente do amor. E no coração azulado residia a força e a vontade de ser livre, para amar, ser amada e tocada com leveza. Porque era a leveza enfim o que mais procurava.E como que antecipando o que estaria por ser visto, tatuara do lado esquerdo,ali, abaixo do olho, um coração pequenino, para que não esquecesse de ver o amor, quando ele aparecesse por sob suas retinas.Não o amor que viesse do outro para ela, mas o amor que saísse dela e emanasse o ar de quem ela escolhesse.