23 de dez. de 2008

A terceira margem




Um pai de família, largando mulher e filhos,sai de casa, num dia ensolarado de sol,pega seu barco,e ao passo que percorre as águas do rio turvo,se vai para longe,para nunca mais...Em "A terceira margem do rio" de Guimarães Rosa,conhecemos a história de um homem que ao se deparar com seu vazio interior,com seu caos cotidiano e enlouquecedor,opta pela terceira margem de um rio desconhecido,um universo paralelo que não é direito ou esquerdo,primeiro ou segundo,mas que é um caminho do meio,saída lógica para quando não se quer o comum,o de todo mundo.O homem resignado que sai de casa à procura de um rumo, de um sentido em toda a loucura que parecia viver, tem muito de todos nós.Lembro que ao ler pela primeira vez este conto,não pude deixar de notar e lembrar as vezes em que eu parti pelo caminho do meio.As vezes em que não podendo ter algo que muito queria,optei pelo caminho do meio,por ter algo parecido,ou que fizesse o mesmo efeito."Não se engane,a vida vai tratar-te mal",me disseram,e eu nem sabia ao certo o que essa frase queria dizer,quando comecei a perceber que a minha vida nunca seria completamente cheia de flores.Conheço pessoas que não conseguem ou não enxergam a terceira margem.Que vêem o mundo sempre de maneira dicotômica: certo X errado,Liberdade X prisão,Doença X saúde, Pecado X perdão, Deus X Diabo e assim sucessivamente.Essas pessoas enxergam apenas dois caminhos:o de ida e o de volta,não parando para perceber o terceiro caminho que é sempre possível.É como se o olhar dessas pessoas não fosse treinado para enxergar a terceira margem,como se à essas pessoas não fosse permitido a visão de um terceiro olho,caminho necessário para aqueles que não conseguem exatamente o que desejam, da maneira como desejam.A verdade é que muito raramente as coisas acontecem em nossas vidas da maneira que sonhamos.E se queremos ser felizes,é preciso estarmos alertas para os vários atalhos que nos serão apresentados em nosso caminhar.E quando se trata de amor,isso se torna ainda mais delicado e profundo.A partir do momento em que cativamos alguém,em que nos envolvemos e envolvemos alguém,temos que ter a consciência que com o amor não se brinca,pois muitos mataram,sofreram e viram suas famílias desintegradas em nome dele.O amor é coisa séria! E principalmente nele,quase sempre,temos que pegar a terceira margem,ceder aqui e ali,porque o amor não é via de mão única, sendo justamente, suas infinitas nuances e características que fazem dele um sentimento deveras singular.Da próxima vez que você se vir enrolado numa história de amor,experimente a terceira margem,experimente o caminho do meio,saiba ceder,saiba fazer concessões,costuras,remendos,emendas.O amor é isso aí.Misto de vida e destino.Terceira margem que os que sofrem procuram,cura para a loucura diária que experimentamos.




P.S: Um Natal cheio de paz para todos nós,agora que é chegado o aniversário do menino luz, que possamos nos enternecer com a lição que ele nos deixou.
Imagem: Google imagens

21 de dez. de 2008

Gatos


Caminhos de sol,lembranças que permanecem em mim.Tento puxar pela memória,mas não consigo lembrar de onde vem esta minha paixão pelos gatos.Há pessoas que amam cavalos,outras que amam passarinhos em gaiolas,outras que até amam ramisters.Eu,amo gatos.Brancos,amarelos,vermelhos,malhados.Gatos.Para mim,os gatos têm algo de mágico,e por sob suas patas parecem esconder o mundo.Me encanta vê-los brincar numa tarde fresca,como se a vida fosse uma eterna festa,como se o mundo não fosse movido pelo dinheiro,ou coisas assim.Me encanta a maneira como se entregam absortos quando estão dormindo,como se enroscam e ronronam quando querem carinho.Considerado sagrado no Egito, o gato para mim sempre foi sagrado também,sagrado lugar de repouso,onde muitas vezes descansei minh'alma cansada.Lembro certa vez de um caso curioso que aconteceu comigo,lá pelos indos de antigamente,quando eu tinha então sete anos.Havia aprontado na escola,e como reprimenda fiquei sem ver tv a tarde toda.Lembro-me perfeitamente da roupa que eu vestia e do modo como chorei por horas à fio...Num determinado momento abri a janela do meu quarto,e não tinham se passado nem dez minutos,quando pela janela entrou um gato malhado.Que susto!pensei.Mas logo quedei-me satisfeita,que bom era ter uma companhia ao meu lado naquela tarde de lágrimas e imcompreensão.O gato miou,deu voltas em meu quarto e deitou-se em meu colo.Nada lhe perguntei.Nada quis saber dele.De onde tinha vindo,o que procurava,nada.Durante o tempo em que estivemos juntos imperou um silêncio de pedra entre a gente,nem um dos dois ousava ferir aquele momento,com palavras ou miados de desconfiança,um momento que parecia se equilibrar no fio sensível de uma corda de violino e qualquer passo em falso, algo seria quebrado.Mas assim como veio, a tarde findou,e no começo da noite o gato dava mostras de querer ir embora.E foi com a alma quebrantada que o vi partindo lépido e fagueiro pela janela afora. Ainda hoje não sei ao certo o que aconteceu,não sei se foi sonho ou realidade,se foi o simples desejo de não estar sozinha que fabricou a imagem daquele gato,mas o fato é que naquela tarde em que chorei,tive Deus comigo.
Imagem: All Posters

17 de dez. de 2008

Equilíbrio:do Lat. aequilibriu

Girl on a bycicle - Max Alexander



As vezes eu me pergunto porque nunca aprendi a andar de bicicleta. Nunca me deixei saber ao certo como seria estar em alta velocidade,descendo por uma grande avenida,com o vento no rosto e o coração a mil.Quando eu era adolescente eu bem que tentei, mas confesso que o medo de cair e o medo de estragar a bicicleta alheia sempre me bloqueou e esta vontade foi aos poucos ficando para trás,deixando em mim um gosto de coisa mal resolvida. "É preciso se ter equilíbrio!",sempre me dizem meus amigos.E acho que aí sempre foi o xis da questão:equilíbrio.Como manter a mente serena e o equilíbrio se eu morria de medo de cair?de não conseguir?No fundo, equilíbrio foi algo de que sempre precisei na vida e não só no que dizia respeito à bicicletas.As vezes me sinto como uma equilibrista que por trabalhar fazendo manobras numa corda bamba,por estar frente a frente com o perigo todos os dias,não consegue simplesmente relaxar e curtir o momento.Eu sou muito assim.Por nem sempre estar preparada para os perigos da vida,muitas vezes deixo de relaxar e simplesmente curti-la.Acho que é aí que entra o equilíbrio,a divisão correta entre o que é ruim e o que é bom,entre o que faz sofrer e o que nem merece ser lembrado,juntando as duas partes de um sentimento,balanceando as idas e vindas dos nossos caminhos.Se olharmos a imagem da bicicleta como metáfora da vida,saberemos que com a gente é assim:se relaxamos e esquecemos o medo de cair,passamos horas maravilhosas de entretenimento.Mas se nos podamos,e deixamos o medo ser mais forte,pouco vivemos,pouco experimentamos.Eu ainda desejo aprender a andar de bicicleta, ainda desejo muitas coisas.O que me falta é exatamante o equilíbrio para discernir e perceber a hora exata de começar, a hora exata que terei coragem enfim de viver,e de deixar a vida,esta bicicleta multicor,me levar pelas ruas...E o vento no rosto irá me lembrar que estou viva.Ainda.E talvez por muito tempo.

12 de dez. de 2008

Era do sonho

Estamos vivendo a era do sonho.A volta da crença em valores há muito esgarçados,há muito esquecidos.Pois,nunca a humanidade precisou tanto do sonho.Nunca ela precisou tanto da arte e do sonho que esta suscita.Há na atualidade, em cartaz no cinema,uma grande profusão de filmes que abordam situações e personagens oníricos. Já fui ver quase todos.Histórias que abordam o desconhecido,o inexistente,os contos de fadas, que retratam personagens, que, "felizes para sempre", parecem rir de nossas vidas comezinhas e nem sempre óbvias.E se o cinema é uma espécie de extensão do que o homem pensa e deseja, nada mais natural do que vermos refletido na tela, justamente o que nos falta.Precisamos do sonho porque a vida se tornou deveras pesada.Precisamos do sonho,porque o coração reclama cuidados e o amor,essa fonte que nunca deveria secar,é a coisa mais rara de se conseguir e manter.Precisamos do sonho porque o preço do pão aumentou,porque o preço da gasolina aumentou,porque o preço da vida aumentou.Há muitas promoções nas vitrines,muita queima de estoque,mas nada que nos deixe esquecer que é tempo de homens partidos,homens que mendigam o pão e que enxergam nas vitrines não as promoções que elas apresentam,mas sim o descaso dos que podem não somente ver,mas comprar o que elas oferecem.Sim,porque aproveitar uma promoção é fácil,difícil é olhar para o lado,para o irmão amarelado de FOME. Precisamos do sonho porque a política, a desigualdade social,os juros,a correção monetária e a inflação vão mal.Precisamos do sonho porque as doenças assolam o mundo, e por mais que nos doa,nos que sofrem dói ainda mais.Morrer de fome dói.Morrer de sede dói.Morrer de AIDS dói.Morrer sozinho dói. Precisamos do sonho, acima de tudo, para que a loucura não se estabeleça.Precisamos do sonho para que a tristeza não nos tome de assalto, e para acreditarmos que vale a pena se estar vivo.Estamos na era do sonho, e podemos fazer nossas apostas.O mundo há de continuar sonhando.Porque a vida, esta está cada vez mais longe do que é sonho. Surpreendentemente,plena de realidades.
Imagem: Google imagens

6 de dez. de 2008

Por entre luzes e câmera



Não. Eu não sou a Júlia Roberts. Não tenho a sua boca,não tenho o seu sorriso,não tenho o seu olhar. Não, eu não sou uma famosa atriz de cinema internacional. Levo minha vida dando aulas,lendo,escrevendo,falando de literatura para jovens imaturos e um tanto apáticos que me olham e muitas vezes não me vêem, em salas de aula que mais parecem muitas vezes prisões de onde eu quero fugir, que eu quero esquecer. Não, eu não ganho um maravilhoso e monumental salário.O que ganho mal dá para minhas economias e vaidades femininas. O que ganho ainda não me permite vôos mais longos e rasantes. Acho até que do jeito que a coisa vai,qualquer dia desses eu acabo caindo da nuvem azul de sonhos em que vivo. Não, eu não acabei de ter filhos gêmeos. Eu não casei com meu assistente de fotografia, eu não deixo multidões de boca aberta, eu nunca fiz um filme em que apesar de nele fazer o papel de uma prostituta,isso foi o que menos importou,porque o meu sorriso roubou a cena todo o tempo. Bom,eu posso até não ser a Júlia Roberts. Mas tenho pelo menos uma coisa que ela também tem: a força natural, a água que nunca seca e que faz parte de toda mulher. O viço inesgotável, a alma inconseqüente,e muitas vezes o brilho opaco que aparece em dias de chuva. Não,eu não estou em minha melhor fase.Sinto dores,tenho marcas,manchas que demoram para sair.Mas se desejam saber,a minha luta é diária e ela não tem nada de cinematográfica. É apenas uma mulher comum,rodando e gravando diariamente impressões por onde ela passa,percorrendo seu set de trabalho,estudando as prováveis Premières de suas aulas assistidas por multidões invisíveis. Eu amo olhar para a moça aí de cima. Ela é mágica. É doce, é linda, simplesmente Júlia. Mas eu não sou a Júlia Roberts. E digamos que não sê-la não me deprime. Muito pelo contrário. Não me agradaria nunca o fato de não ter privacidade.Ser super star também tem suas desvantagens. Me orgulho muito de ser quem sou e a cada dia pela manhã eu sinto que dou um passo novo. O grande diretor lá em cima tem muito prestígio.E lhes conto um segredo: ele gosta de mim. Sem sua ajuda eu não estaria viva. Viva para lutar,trabalhar, ir ao cinema.Viva para compreender que eu não sou a Júlia Roberts, e afinal de contas como é maravilhoso não o ser,como é maravilhoso ser eu mesma,sem máscaras ou maquiagem,uma super star assalariada,com seu nome escrito não na calçada da fama,mas nas calçadas da vida,por onde passo todos os dias.
Imagem: Google imagens

1 de dez. de 2008

Crescer

Foi só quando o Pedrinho disse que ela tinha cara de peixe morto que Ariela teve coragem: "Chato!", "Cara de urubú quando voa" e saíra da sala aonde acontecia a festinha para chorar no canto, que precisava se refazer. Pedrinho, do alto de seus 3 anos, meio homem, meio anjo, proferira o que para ela se configurava num sacrilégio, visto que ela gostava dele desde os dois anos, que foi quando se cruzaram na fila do pediatra, onde suas mães encontrando súbitas afinidades, se puseram a falar sobre doces e descobriram que no verão matriculariam os filhotes na mesma escola.A festinha rolava solta enquanto Ariela à espreita, via o jeito com que a Sandrinha jogava charme para o Pedrinho, e como este, bobo, ria da cara dela imitando o urso Pascoalino.Ah! se pudesse entender o que se passava no seu coração! Talvez não se sentisse tão vazia, mesmo tendo comido quantos brigadeiros a sua barriga poderia suportar(é que a mãe dela só permitia doces aos domingos).

Ah! se pudesse entender o que era aquilo tudo, aquela sensação que a tomava aos fins de semana, aquela saudade daquele menino chato que pegava no seu pé mas que também tinha um cheiro bom de roupa lavada...E ficou ali a conjecturar sobre todas essas coisas, essas curiosas coisas da vida, quando o Pedrinho com dois copos de refrigerante chega perto dela e diz: "Ó,pra você!" e ela num sorriso lindo vermelho escarlate, pega o copo, bebe um bocadinho, levanta os olhos e diz: "Tá bom, te pedôo Pedlinho, mas plomete que nom me chama mais de pêxe morto"? "Hum, ah não sei,Aliela você fica chata tem hora!!" "Ah Pedlinhoooo!" "Tá bom, num chamo mais não e você também não me xingue!" "Tá bom!" E saíram os dois de volta para o salão, de mãos dadas e pensamentos soltos que tava na hora de dançar, que a vida era festa, pura e cristalina, antes da primeira desilusão de verdade, do primeiro "não" doído ou suspiro desiludido.A vida para eles por enquanto, era aquilo ali, o brigar e desbrigar, o fazer as pazes e o brincar, verbos que a gente parece esquecer quando começa a crescer.

Imagem: Getty images