31 de ago. de 2009

De meninos e bolas de gude


Senhores de si e do mundo que o cercavam, lá iam eles pela rua com suas riquezas no bolso. Asas nos pés,enlevo de quem tem toda a vida pela frente. E tinham. Eu podia ficar a tarde todas vendo-os jogar e era incrível como aquelas bolas de gude ganhavam um status de coisa mítica, de coisa feita de sonho e devaneio. Pareciam reis,eles e tantos outros, com aquela melodia feita de vozes infantis que gritavam a todo momento,seja quando ganhavam e principalmente quando perdiam alguma partida. Nunca entendi bem como funcionava.Mas aquele que possuía apenas uma gude ao sair de casa poderia ir “matando” inimigos e voltar com o bolso cheio das benditas bolinhas.Aritmética das aritméticas!Mágica das mágicas!
Com um pouco de sorte e um outro tanto de talento,lá iam para os bolsos esferas coloridas e imagéticas,azuis,verdes,amarelas,multicores.E eu sentia um orgulho bobo,eu menina de tranças, embevecida com a felicidade dos meus dois manos…
As vezes,em dias como o de hoje,bate uma saudade tremenda daquela época.Tempo em que eles eram meus.Tempo em que os tinha por perto e à mão e que um de meus passatempos favoritos era vê-los brincar.Meus irmãos,pequenos reis da bola de gude,eu princesa envolta em meus contos de fadas.E quem diria que o tempo haveria de nos separar?Ah! meninos grandes homens!Saudade daquele tempo em que a coisa mais importante com o que se preocupar era estar ali,com a vida a passar por sob minhas retinas e com o enlevo de meus dois meninos grandes,
cheios de si,
cheios de vida.

24 de ago. de 2009

Sonhadores

Todos nós temos necessidade de ser olhados.
 Podíamos ser divididos em quatro categorias 
consoante o tipo de olhar sob o qual desejamos viver.
 A primeira categoria é a dos que procuram 
o olhar de um número infinito de olhos anônimos
 ou, por outras palavras, o olhar do público.
 Na segunda categoria, incluem-se aqueles que não podem viver
 sem o olhar de uma multidão de olhos familiares. 
Vem em seguida a terceira categoria, 
a categoria daqueles que precisam 
estar sempre sob o olhar do ser amado
A sua condição é tão perigosa
 como a das pessoas do primeiro grupo.
 Se os olhos do ser amado se fecham,
 a sala fica mergulhada na escuridão.
 Finalmente, há uma quarta categoria, 
bem mais rara, que são aqueles que vivem
 sob os olhares imaginários de seres ausentes. 
São os sonhadores.
Milan Kundera em “A insustentável leveza do ser”

20 de ago. de 2009

Cotidiano


Acordei.Estou viva!Mais 20 minutinhos. Ai que preguiça.Levanto.
banheiro."meu cabelo tá uma droga,e essas olheiras?!".Visto a roupa."tenho que emagrecer!".Mochila.relógio.anel.cama bagunçada."Tchau quartinho!"Porta,mãe,cara inchada.Nada de café,não consigo comer às 6 da manhã.Tchau,ponto de onibus,ônibus lotado,fico de pé."Odeio gente que não toma banho de manhã!Odeio gente que não escova o dente de manhã".Metade do caminho.ônibus esvazia.Posso sentar.Sono,muito sono.mais meia hora,chego no destino.Desço,ando.Escola."Bom dia!". 1ª aula,2ª,3ª.Intervalo.sms."papo de professor é chato as vezes,em outras não"4ª aula"esses meninos não querem nada!",5ª aula.Ufa!Hora do almoço.sms.Chega a tarde."Boa tarde"Mais 4 aulas."sms.Quero ir pra casa!"Vou.Ponto de ônibus.Mochila cheia de papéis.Ônibus demora.sms.No caminho pra casa
me encho de sonhos e penso neles com toda a força do meu coração.
queria estar longe,em outro lugar,queria fazer a diferença!"Um dia farei!"Chego em casa.
mãe,pai.quarto.banho.tv.internet.msn.coisas para corrigir e para ler,mas cadê coragem?
fico com sono,leio um pouco,deito.insônia.O dia amanhece.Acordei.Estou viva?

8 de ago. de 2009

Doce


As vezes eu queria ser como um algodão doce:
leve,colorido e doce,lógico.
E quando, na ânsia e avidez que só os que gostam do doce
que só um algodão doce pode ter, me engolissem,
eu estaria ali, dentro da barriga de alguém,
colorindo aquele mundo interno com fulgor
e deixando um rastro de minha cor
por todo o corpo daquele que me escolhesse,
num rastro que iria da boca até o coração.
Da ânsia de comer algo à nobreza do permanecer.
Um amor leve.
Azul talvez.
Azul e leve,
como a vida deveria
s
e
r
.

1 de ago. de 2009

O leitor



Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante. (Clarice Lispector)
Palavras que habitam o silêncio.Acho que poucas pessoas no mundo experimentam um dia a adorável sensação que é a de se ter alguém que pelo menos uma vez na vida nos ouça de verdade.Isso porque há na atualidade uma total busca pelo que é rápido e solúvel, e ouvir verdadeiramente,sentar e esperar palavras brotarem dos lábios de outra pessoa é, apesar de louca aventura, quase impensável nos dias urgentes em que vivemos.Esse filme me fez pensar...Como era o meu mundo antes que eu soubesse ler?Como eu olhava as coisas à minha volta antes que soubesse seus nomes?E depois que soube,como lidei com as mudanças que isso me trouxe?Definitivamente este é o tipo de filme que me toca mais nos silêncios que sucita,do que nas vozes que me fala.A história de uma mulher e seus amantes,personificados na figura do rapaz que lê para ela,e nas palavras que começam a permear o seu mundo comum e solitário.O rapaz e as palavras que saíam dele eram os seus amores,e esse sentimento venial pertencia à ela,que entre absorta e inquieta deixava-se escravizar,ou antes escravizava o rapaz que descobria em contrapartida dois amores,o amor por ela e pelo sexo e o amor por algo dentro de si que ele não conhecia."Não sabia que era bom em algo",ele diz.O resto da trama se desenrola preguiçosamente, e o que nos fica é a singular história de amor mal costurada,daquelas histórias de amor que mal acabadas,permanecem sempre adiadas,como um daqueles contos que lemos e que acabam na melhor parte,entre uma vírgula e um ponto final que não veio.E a realidade de não saber o que está escrito num papel vira quase nada quando se tem a coragem de ler o outro,de ouvir o outro e de se deixar deleitar pela alegre fusão que há entre uma voz e letras que do papel,uma vez lidas,ganham ares de festa e se tornam músicas, e se tornam confetes,soltas que estão no ar acizentado de nossas vidas sozinhas.Palavras que quando lidas em voz alta são como pássaros no inverno:Voam para o lugar mais quente e próximo que encontram e que no filme em questão é o coração da mulher, que hávida por emoção,ouve o seu amante,para logo em seguida deitar-se com ele,emudecendo então.Porque era nesse momento,nesse exato momento em suspenso,que as palavras antes ouvidas,iam morar dentro dela,em sementes de sêmem.